A Qualidade do Fazer
“A atitude durante uma lição não deve ser nem séria, nem ansiosa, nem concentrada. Os “erros” não devem ser evitados, qualquer desvio pode ser observado e utilizado na exploração de uma nova possibilidade.” M. Feldenkrais
A força transformadora do Método Feldenkrais, muitas vezes revolucionária na vida de quem o pratica, esta na qualidade com que se vive as primorosas sequências de movimentos criadas pelo Dr. Moshe Feldenkrais. Vamos entender neste texto como é possível gerar esta qualidade que é um grande diferencial deste Método.
A ênfase não está em posturas ou em movimentos pré-estabelecidos. Não se trabalha com a noção de que determinado movimento proporcionará este ou aquele resultado. O “objeto” de estudo, de análise e de manipulação não é o “movimento”, não são músculos a serem alongados ou fortalecidos, nem órgãos a serem estimulados. Seguramente tudo isto está envolvido mas as referências organizadoras da prática são outras.
O Método Feldenkrais toma como “unidade de trabalho” ou “referência organizadora” a qualidade da execução do movimento. Melhor dizendo, não se trata tanto da qualidade do “movimento” mas sim da qualidade da organização pessoal que gera o movimento. A pessoa em seus processos de orientação no campo gravitacional e social, sua capacidade de auto-direcionamento e seu grau de integração pessoal. Este grau de integração se expressa na qualidade da postura e dos movimentos e pode ser aprimorado quando se atua sobre esta qualidade.
Para Feldenkrais, o grau de integração pessoal é baixo quando há muitas motivações contraditórias e não conscientes atuando simultaneamente (má postura, má qualidade de movimento e saúde precária). Nestes casos de “crossed motivations”, a realização de uma intenção é dificultada por movimentos “parasíticos”, contradições musculares, intenções habituais não conscientes que podem atuar em direções contrárias à intenção atual de executar este ou aquele movimento.
Este é o ponto em que as lições do Método atuam, na estratégia utilizada pela pessoa para executar um movimento, seja ele qual for. A matéria prima é a estratégia e a organização, não o movimento em si. Nesta estratégia existe como que uma espécie de “coeficiente de integração pessoal” e o objetivo é aumentar este coeficiente na direção da unicidade, estado em que a intenção e o ato se dão como um só intento.
Para isto as lições estimulam o sistema nervoso em sua plasticidade e capacidade de aprender, levando-o a gerar combinações inusitadas de movimentos, a decompor padrões habituais e experimentar novos. Ou seja, o método promove a flexibilização da organização do sistema nervoso, um aprendizado orgânico que possibilita novas estratégias na realização de movimentos e na geração da postura. As palavras chaves então são aprendizado, diferenciação, integração e auto-direcionamento.
Como os movimentos são utilizados para se atingir este fim?
Para fazer uma lição de Feldenkrais deve-se utilizar um modo de atenção diferente em que o foco está no “como” e não no resultado. Os movimentos em si mesmos são de importância secundária, o importante é a maneira de executar cada movimento. Toda a atenção deve ser dirigida ao modo de fazer, à identificação dos padrões e estratégias conhecidos e à descoberta de novas possibilidades. O movimento ou a postura “corretos” (idéia de um resultado final) devem ser temporariamente esquecidos, bem como a ambição de conseguir realizar o movimento e o desejo de reconhecimento e aprovação.
Uma vez que este modo de atenção seja utilizado, qualquer movimento pode se tornar uma lição de Feldenkrais. O contrário também é verdadeiro, qualquer lição de Feldenkrais pode ser distorcida em exercício, caso o modo de fazer volte a ser orientado por um resultado previamente estabelecido (um modelo “correto” de movimento) que é sentido como a meta que deve ser alcançada. Por este motivo, as seqüências de movimento deste método costumam ser chamadas de lições e não de exercícios, o nome dado pelo criador do método foi “Awareness Through Movement” (Consciência pelo Movimento). Estas lições podem ser vistas como um espaço de aprendizado e descoberta.
"Chegando ao ponto, eu estava lidando com um processo de auto-direcionamento e cada movimento em particular era importante apenas na medida em que iluminava este processo (…) Consciência pelo Movimento conduz ao conhecimento de si mesmo e à descoberta de recursos pessoais anteriormente desconhecidos."
(Moshe Feldenkrais in: Illusive Obvious, p. 90-94)
O autor compara os processos que se dão durante estas lições ao que se passa quando se aprende a pintar ou a tocar um instrumento, ou ainda ao processo de compreensão e resolução de um problema matemático (Feldenkrais, 1981).
Como fazer uma lição?
A atitude durante uma lição não deve ser nem séria, nem ansiosa, nem concentrada. Os “erros” não devem ser evitados, qualquer desvio pode ser observado e utilizado na exploração de uma nova possibilidade.
Não são oferecidos modelos para serem copiados. As pessoas são conduzidas a realizar movimentos simples que são os constituintes de uma ação mais complexa sem saberem qual será o movimento final. Desta forma, diminui-se a tendência ao sobre-esforço comum quando se tenta “conseguir” realizar uma tarefa. Enquanto se trabalha cada “movimento constituinte” o foco da realização está na duração do movimento e nas qualidades percebidas ao longo do percurso. A atenção é dirigida alternadamente para a figura (a parte específica de um movimento, ex: olhar para a direita) e para o fundo (o que acontece no corpo todo). Com o tempo o foco simultâneo torna-se possível.
Os movimentos devem ser feitos lentamente, sempre dentro da amplitude do conforto, sempre apoiados nos recursos atuais da pessoa. Os movimentos parasíticos (que além de desnecessários são prejudiciais) são mais facilmente percebidos quando a ação é realizada dentro destes limites. Uma vez identificadas internamente, as contradições musculares podem ser descartadas.
Busca-se descobrir/utilizar o mínimo de esforço necessário para a realização de cada movimento e, naturalmente, de maneira progressiva e personalizada, o movimento se tornará mais simples, mais amplo e mais eficiente. Caminha-se assim para o objetivo de tornar a organização pessoal mais integrada. Como resultado indireto, as posturas antes impossíveis tornam-se possíveis, as difíceis tornam-se fáceis (Feldenkrais, 1981).